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O Sacromonte é uma criação italiana do final do séc. XV, quando Jerusalém se encontrava sob o domínio do império Otomano. Esta forma de reproduzir a Cidade Santa, recorrendo a capelas onde se representavam os passos da Prisão e da Paixão de Cristo. Esta representação repercutiu-se rapidamente pela Europa e permitiu ao peregrino experienciar de forma segura, sem uma deslocação à Palestina, os últimos momentos da vida do Salvador.
Na esteira da Contra-Reforma, com o reitor da Universidade de Coimbra, Manuel de Saldanha, surgiu (1644) a Via Crucis no deserto carmelita do Bussaco. Mais próximo da tipologia dos Calvários medievos, este primeiro fôlego concretizou-se através de cruzes de pau-brasil que assinalavam, com legenda, os respetivos passos que se estendiam desde a Sentença até ao Calvário.
50 anos depois, o bispo-conde D. João de Melo fez colocar representações pictóricas de cada passo da Prisão e da Paixão dentro de pequenas ermidas de plano centralizado quadrangular que invocavam a capela da Virgem no monte Carmelo. Nesta empresa, que começa pelos Passos da Paixão, o bispo afirma a sua autoridade impondo a sua pedra de armas e uma lápide, datada de 1694, junto à ermida de S. José.
Em 1695, outra lápide (desaparecida) junto aos Passos da Prisão assinala um percurso messiânico desde o Horto até ao Calvário. No entanto, a magnitude projetada para o Sacromonte não se resume à inclusão dos Passos da Prisão – D. João de Melo quer criar uma nova Jerusalém no deserto carmelita e, para tal, importa da Cidade Santa as medidas exatas entre cada momento do martírio de Cristo. É a necessidade de implementar essas medidas num espaço reduzido que justifica a acentuada sinuosidade do percurso da Via Sacra.
Mas a emulação a Jerusalém não se esgota nessa reprodução precisa das distâncias. Para tal concorre também a introdução de Passos como o Cedron (inexistente nas Sagradas Escrituras) e de estruturas como a Porta de Siloé, a Porta Judiciária, o Pretório e o Calvário. Os dois últimos são os únicos que diferem das restantes capelas da Via Crucis do Bussaco – marcam os momentos mais relevantes de toda a Via Sacra, a condenação e a morte do Salvador – e neles D. João de Melo incorporou os elementos que deveriam conferir-lhes maior verosimilhança. Assim, encontram-se no Pretório os vinte e oito degraus que Cristo subiu no palácio de Pilatos e a varanda do Ecce Homo. No Calvário, o corpo sextavado que assinala o Passo em articulação com o corpo paralelepipédico da ermida homónima materializa a gravura do Sepulcro de Cristo na Anastasis (Antonio del Castillo, 1654).
No séc. XVIII, D. António de Vasconcelos e Sousa patrocinou a criação de figuras de vulto em cerâmica e pedra (destruídas na primeira metade do séc. XIX) e das quais resta apenas uma representação de Cristo no Horto, primitivamente na gruta do Passo do Horto e hoje na ermida de S. José.
O cenário desolador a que chegaram as Capelas dos Passos levou o Governo português a encomendar (1887) ao ceramista Rafael Bordalo Pinheiro doze grupos escultóricos para outros tantos Passos. No entanto, a morosidade da empreitada, o fim do financiamento e a morte de Bordalo Pinheiro em 1905 resultaram em apenas nove cenas da Prisão e Paixão de Cristo que nunca chegaram ao deserto carmelita.
Já no segundo quartel do séc. XX, em renovada tentativa de devolver a vivência da Paixão de Cristo à mata do Bussaco, o escultor Costa Mota sobrinho plasmou no barro as epígrafes de cada capela, tirando partido das possibilidades plásticas das peças chacotadas. Na impossibilidade de manipular a luz, artificial e natural, o artista encontraria na policromia um novo meio de acentuar a emotividade contida nas suas composições que, a partir do Passo do Despojamento das Vestes, assumem um outro impacto visual.
É na articulação de todos os contributos histórico-artísticos com a envolvência da mata e a sugestão omnipresente da força simbólica de Jerusalém que reside, ainda hoje, o sentido pleno do percurso da Via Sacra no Sacromonte do Bussaco e, simultaneamente, um dos aspetos que o tornam único no Mundo.
Fonte: Lurdes Craveiro